Kamila Valieva

Sobre danos irreparáveis

Kamila Valieva cai durante o programa livre da prova individual feminina de patinação: erros fizeram atleta cair do primeiro para o quarto lugar.

Eu disse, três dias atrás, que ninguém em sã consciência apostaria contra Kamila Valieva. De fato, eu jurava que ela botaria o rinque abaixo com os quádruplos, levaria o ouro com o pé nas costas, e depois veria sua medalha lhe ser tirada como um doce de uma criança. Mas o que aconteceu na manhã desta quinta-feira em Pequim foi ainda pior. Valieva sucumbiu à pressão e errou tanto que caiu do primeiro para o quarto lugar na prova feminina de patinação artística. Veja a sua apresentação a partir do minuto 3:54:20:

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O “dano irreparável”, aquele que o Tribunal Arbitral do Esporte (CAS) disse querer evitar quando deixou que Valieva patinasse, está feito. Mas não precisava ter sido assim, não deveria ter sido assim. Bastava que a coisa certa tivesse sido feita desde o momento inicial. Essa humilhação em escala global não teria ocorrido se a suspensão provisória aplicada pela Rusada (a agência antidoping russa) quando veio o teste positivo não tivesse sido levantada pela própria Rusada um dia depois; e se o CAS não tivesse ignorado os argumentos do COI, da Agência Mundial Antidoping e da União Internacional de Patinação. Mas fizeram tudo errado, e Valieva, uma adolescente de 15 anos, não aguentou o tranco.

Algumas reações, no entanto, estão perdendo completamente o foco. Perguntam: “e aí, bando de abutres, valeu a pena? Estão felizes agora que conseguiram o que queriam?” Não, não há como estar feliz com a maneira como as coisas terminaram. Não queríamos sangue nem humilhação; só queríamos uma competição limpa em que as regras internacionais fossem seguidas, sem fazer vista grossa para o doping comprovado de uma atleta só porque ela é extraordinária (e ela é) e vem de uma potência olímpica. E a melhor forma de fazer isso seria aquela que a Rusada e o CAS recusaram: manter a suspensão para que Valieva não competisse. Seríamos privados do espetáculo, mas não haveria a sombra do doping – independentemente de ter sido intencional ou acidental, e do papel de cada personagem nisso tudo.

Não queríamos sangue nem humilhação; só queríamos uma competição limpa em que as regras internacionais fossem seguidas

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O que temos, agora, é uma adolescente humilhada e que provavelmente será descartada um pouco mais cedo que o previsto pelo moedor de carne de Eteri Tutberidze (que nem deu um abraço na pupila quando ela saiu do rinque), pois há peças de reposição abundantes para substituir Valieva. Todos falharam com ela – mesmo que seja verdadeira a história do medicamento do avô, alegada pela patinadora como causa da contaminação –, mas esses adultos seguem suas vidas normalmente, desde o entorno imediato da atleta, cuja responsabilidade no caso de doping precisa ser investigada a fundo, até aqueles que tomaram as decisões equivocadas que permitiram a Valieva competir.

Na madrugada de quinta para sexta, Eileen Gu pode acertar um triplo cork com quádruplo axel, duplo twist carpado e royal straight flush, pouco importa: a grande personagem de Pequim-2022 será mesmo Kamila Valieva. Ela começou reivindicando esse status pelo melhor dos motivos, ao fazer o que nenhuma mulher havia feito em uma competição olímpica, mas termina protagonizando uma tragédia desnecessária. Querer que um caso de doping seja tratado com o rigor necessário não exclui a compaixão com uma atleta adolescente que, em muitos aspectos, é vítima; não há justiça na humilhação, ao menos não neste caso.

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