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Pequim-2022

A patinação artística precisa de uma Simone Biles?

Por
Marcio Antonio Campos
07/02/2022 20:43 - Atualizado: 04/10/2023 16:59
A russa Kamila Valieva, 15 anos, é a primeira mulher a acertar um salto quádruplo na história dos Jogos Olímpicos.
A russa Kamila Valieva, 15 anos, é a primeira mulher a acertar um salto quádruplo na história dos Jogos Olímpicos. | Foto: Fazry Ismail/EFE/EPA

Você ficou impressionado com a Kamila Valieva na madrugada desta segunda-feira? Pois eu fiquei, e não é pra menos: a russa de 15 anos foi a primeira mulher a acertar um salto quádruplo em uma competição olímpica de patinação artística – e, como se não bastasse, ainda fez dois (errou o terceiro), assim como se fossem a coisa mais fácil do mundo. Essa é a parte bonita do negócio, mas existe um outro lado, que alguns amigos me mostraram ao compartilhar um texto no Medium sobre os métodos de Eteri Tutberidze, a treinadora responsável por essa avalanche de russas jovens e extraordinárias que dominam a competição olímpica feminina desde 2014.

Leiam lá, mas resumindo bastante, o “método Tutberidze” força meninas ainda pré-adolescentes a combinar regimes de fome e treinamentos extenuantes de forma que tenham o tipo físico necessário para saltos como o triplo axel e qualquer quádruplo. Com isso, elas atingem o auge lá pelos 15 anos, a idade de Valieva e da campeã olímpica de 2018, Alina Zagitova. Mas essas patinadoras “quebram” logo depois, e acabam descartadas quando estão com 17 ou 18 anos (às vezes até antes disso), porque os métodos da treinadora não são mais adequados para essas jovens. Foi o que ocorreu com a própria Zagitova, que parou de competir em 2019. São contusões tão sérias que as impedem de voltar a saltar ou até de pisar novamente no gelo sem dor, sem falar de desordens alimentares como bulimia ou anorexia.

O sistema de pontuação dá muita ênfase aos saltos em detrimento da parte artística. A patinadora pode incorporar a personagem a ponto de ganhar um Oscar, pode ser uma fada que mais parece voar graciosamente em vez de patinar, mas se não encaixar os saltos suas chances são zero

E o texto do Medium não é exatamente nenhum furo de reportagem; ele tem o mérito de vir na hora certa, mas, a julgar por todas as fontes que usa, descreve algo que a cúpula da patinação artística mundial não ignora, até porque as próprias ex-atletas já contaram muita coisa sobre o seu tempo sob a batuta de Tutberidze. No entanto, tudo vem sendo convenientemente varrido para baixo do tapete, e as queixas são tratadas (inclusive pela própria treinadora) como ressentimento de patinadoras aposentadas.

O Gustavo Longo, do Brasil Zero Grau e que entende desse negócio muito mais que eu, afirma que há um problema de fundo que vai muito além de Tutberidze: o sistema de pontuação dá muita ênfase aos saltos em detrimento da parte artística. A patinadora pode incorporar a personagem a ponto de ganhar um Oscar, pode ser uma fada que mais parece voar graciosamente em vez de patinar, mas se não encaixar os saltos suas chances são zero. E cada vez mais o quádruplo tende a se tornar uma condição sine qua non para a vitória no feminino – no masculino já é feijão com arroz; a última vez que um homem foi campeão olímpico só com triplos foi em 2010, e na época a decisão dos juízes que deixou Evgeny Plushenko com a prata e deu o ouro a Evan Lysacek já rendeu uma bela gritaria. Como disse o Gustavo, se a Tutberidze se aposentasse amanhã, apareceria outra no lugar dela fazendo a mesma coisa (se é que já não tem), porque “o sistema” pede quádruplos. Entregue o que ele pede, e você vira “técnico do ano” da Federação Internacional de Patinação (ISU), não importando o que você faça com as atletas.

Já posso ouvir uma galera dizendo “ah, mas esporte de alto
rendimento é assim mesmo, exige sacrifício”, “mesmo com essa carreira
curtíssima elas já ganham fama suficiente para garantir a aposentadoria”, essas
coisas. Mas sacrifício é uma coisa, abuso é outra. Dois camarões por dia de
jantar é abuso; destruir o corpo de uma patinadora a ponto de ela ter lesões
permanentes, como Evgenya Medvedeva (prata em 2018), é abuso. Pode não ser
abuso como aquele cometido contra as ginastas norte-americanas, mas ainda é
abuso. Será necessário que alguma patinadora russa “quebre” durante a
competição olímpica, como Simone Biles fez em Tóquio, para que o mundo preste
atenção ao preço que está sendo cobrado dessas adolescentes para que elas
tenham a glória olímpica?

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