Programa olímpico

O boxe olímpico subiu de vez no telhado

Por
Marcio Antonio Campos
07/10/2022 00:33 - Atualizado: 04/10/2023 19:57
Umar Kremlev (de terno cinza claro) é cumprimentado após votação contrária a uma nova eleição para a presidência da IBA.
Umar Kremlev (de terno cinza claro) é cumprimentado após votação contrária a uma nova eleição para a presidência da IBA. | Foto: IBA/Divulgação

O boxe é um dos esportes mais tradicionais dos Jogos Olímpicos; inúmeros ícones da modalidade, antes de conquistarem a glória como profissionais, passaram pelos ringues olímpicos como amadores. Mas de uns tempos para cá a coisa está feia para os amantes da chamada “nobre arte” (os ingleses o chamam de sweet science), e que recentemente voltou a dar medalhas para o Brasil. O torneio olímpico de Tóquio não foi organizado pela federação internacional da modalidade, como é o costume em todos os esportes, mas por uma força-tarefa criada pelo COI, já que a Associação Internacional de Boxe (Aiba, na sigla usada até 2021 e substituída por IBA) estava suspensa desde 2019 por causa de uma série de problemas de governança e suspeitas-quase-certezas de manipulação de resultados.

A modalidade está garantida em Paris-2024 (novamente sob organização direta do COI), mas não há nada certo para Los Angeles, em 2028 – é a mesma situação do levantamento de peso e do pentatlo moderno, embora por razões diferentes (incapacidade de conter o doping e a substituição da prova de hipismo, respectivamente). E a pessoa que poderia dar uma forcinha para reabilitar o boxe e a IBA diante do COI, o russo Umar Kremlev, não está ajudando em absolutamente nada.

O problema não é simplesmente Kremlev ser russo nesses tempos de sanções esportivas causadas pela invasão da Ucrânia; outras federações internacionais são comandadas por russos – por exemplo, a de tiro esportivo, por Vladimir Lisin; e a de esgrima tinha Alisher Usmanov à frente até que ele decidiu renunciar, em março – e nem por isso a presença dos esportes no programa olímpico corre risco. O problema é Kremlev, que foi eleito num esforço para limpar a entidade do legado nada positivo que ela vinha deixando, se apegar ao poder de uma forma que vem irritando o movimento olímpico e, especialmente, o presidente do COI, Thomas Bach.

Talvez a exclusão do boxe seja a única forma de o COI mandar o recado à IBA e dizer que como está não pode ficar

Kremlev teria um oponente na sua busca pela reeleição, em
maio deste ano: o holandês Boris van der Vorst, que tinha o apoio de parte das
federações ocidentais, especialmente europeias. Mas, no tapetão, Kremlev conseguiu
impedi-lo de competir e foi reeleito por aclamação, em um congresso
extraordinário da IBA realizado em maio. O holandês, então, buscou o Tribunal
Arbitral do Esporte (CAS), que lhe foi favorável: em junho, a corte decidiu que
a IBA deveria realizar uma nova eleição, e Van der Vorst tinha direito a se
candidatar. Um novo congresso extraordinário foi marcado para setembro, na
Armênia. Mas, em vez de promover de uma vez por todas o tira-teima, a entidade
partiu para uma artimanha que parecia coisa de sindicato: as federações
deveriam votar se haveria uma votação para presidente.

O resultado foi um massacre: 106 a 36 contra a realização da
nova eleição. Kremlev segue como presidente. Para Van der Vorst, só resta a
possibilidade de apelar novamente ao CAS e questionar se a decisão da corte foi
obedecida ou não – e é claro que não foi. E aí é preciso perguntar: se Kremlev
tem o apoio tão amplo das federações nacionais, como ficou evidente no
congresso de setembro, não era mais fácil ter realizado a eleição de uma vez,
derrotado Van der Vorst e resolvido de vez a controvérsia? Ao desafiar a
determinação do CAS, Kremlev e a IBA só jogaram gasolina na fogueira.

E não ficou nisso. Dois dias antes da “votação sobre a votação”, o Comitê Executivo da IBA suspendeu a federação de boxe de Ucrânia alegando interferência governamental em uma disputa pela presidência da entidade. A decisão foi recebida com críticas por uma série de outras federações nacionais, e a gota d’água veio no Campeonato Europeu Júnior, iniciado dias depois da suspensão: os ucranianos, avisados de que competiriam sob a bandeira da IBA, se recusaram a entrar no ringue até que, com três dias de campeonato (e várias lutas perdidas por WO), decidiu-se que os boxeadores ucranianos ainda por lutar poderiam defender sua bandeira. Na última terça-feira, a IBA decidiu ampliar essa permissão a todos os lutadores ucranianos em competições internacionais – mas a federação nacional segue suspensa.

Não contente em arrumar encrenca com os ucranianos, Kremlev
ainda está completamente disposto a fazer da IBA a primeira federação esportiva
internacional a aceitar de volta atletas russos e bielorrussos competindo sob suas
bandeiras nacionais, e não como atletas independentes – o exato oposto do que vêm
pedindo Bach e o COI. Ontem, dia 5, a IBA encerrou suas sanções contra a Rússia
e a Belarus, com efeito imediato. E duas federações internacionais, da Finlândia
e da Suécia, já prometeram boicotar qualquer evento que tenha participação de
russos e bielorrussos.

Quem acompanha a coluna sabe que sou contrário ao banimento
total de atletas russos e bielorrussos, e inclusive acho complicada a decisão
de suspender os dois comitês olímpicos por causa da invasão da Ucrânia, devido
aos precedentes que ela cria. Para mim, o comitê olímpico russo deveria estar
suspenso não por causa da guerra, mas por causa do escândalo do megaesquema
estatal de doping; os russos deveriam poder participar de competições individuais,
sempre sob bandeira neutra, até para que não sejam prejudicados à medida que as
próximas competições já começam a contar para a qualificação olímpica.

Em dezembro, o Comitê Executivo do COI se reúne para discutir a permanência do boxe no programa olímpico em Los Angeles. Retirar o esporte significa deixar de fora uma modalidade tradicionalíssima, ainda por cima no ano em que os Jogos serão realizados em um país onde o boxe é muito popular. E, se o COI vai organizar por conta própria dois torneios seguidos (Tóquio e Paris), que mal faria organizar um terceiro? Mas o que é extraordinário não pode virar permanente, não é função do COI ficar cuidando de todos os detalhes de um esporte específico. Talvez a exclusão seja a única forma de mandar o recado à IBA e dizer que como está não pode ficar. O que mais tem por aí é modalidade esportiva querendo entrar nos Jogos Olímpicos; se uma que já é olímpica não faz o dever de casa, a fila anda.

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Marcio Antonio Campos é editor de Opinião da Gazeta do Povo. Coautor de "Bíblia e natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé", escreve no blog Tubo de Ensaio, na Gazeta do Povo; voluntário em duas edições dos ...

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