colunas e Blogs
Papo Olímpico
Papo Olímpico

Papo Olímpico

Los Angeles-2028

Caos e revolta no pentatlo moderno

Por
Marcio Antonio Campos
11/11/2021 22:40 - Atualizado: 04/10/2023 17:20
A alemã Annika Schleu chora após o cavalo Saint Boy destruir um obstáculo e suas chances de medalha no pentatlo moderno de Tóquio.
A alemã Annika Schleu chora após o cavalo Saint Boy destruir um obstáculo e suas chances de medalha no pentatlo moderno de Tóquio. | Foto: EFE/EPA/Tatyana Zenkovich

Nenhum esporte olímpico pode chamar para si a honra de ter sido criado pelo próprio barão Pierre de Coubertin a não ser o pentatlo moderno – esgrima, natação, tiro, hipismo (saltos) e corrida, numa simulação das habilidades que um bom soldado deveria ter, e também uma releitura do antigo pentatlo grego, com corrida, saltos, arremessos e luta. E nenhum esporte olímpico está prestes a sofrer uma mudança tão grande na sua própria essência quanto o pentatlo moderno. Pense em qualquer alteração recente em regras de algum esporte, seja o “toda bola vale ponto” do vôlei, substituindo a vantagem, ou os novos sistemas de pontuação da ginástica e da patinação artística; nada disso se compara ao que vem por aí: o fim da prova de saltos do hipismo e sua substituição por algo ainda desconhecido.

“Podem mudar o nome, se quiserem, porque pentatlo moderno não é mais”, disse ao Papo Olímpico Danilo Fagundes, o principal nome do pentatlo moderno masculino hoje no Brasil, medalhista nos Jogos Sul-Americanos de 2014 e no Mundial Militar de 2021, e duas vezes vencedor do Prêmio Brasil Olímpico como melhor pentatleta do ano (2017 e 2021). Ele é um dos mais de 600 atletas e ex-atletas signatários de uma carta questionando a mudança propriamente dita e, especialmente, a forma como está sendo conduzida pela União Internacional de Pentatlo Moderno (UIPM). Os atletas, que incluem medalhistas em várias edições de Jogos Olímpicos, como a nossa Yane Marques, pedem a renúncia coletiva de toda a cúpula da entidade, a começar pelo presidente, o alemão Klaus Schormann, que está no poder há quase 30 anos – o grupo de diretores ainda inclui Juan Antonio Samaranch Salisachs, filho do lendário ex-presidente do COI Juan Antonio Samaranch.

“Isso não se decide em uma semana. Provavelmente já estava acontecendo antes mesmo do caso da alemã”, afirma Fagundes, referindo-se à técnica Kim Raisner. Em Tóquio, ela ficou famosa ao acertar um soco no cavalo Saint Boy, que refugou e matou as chances de medalha de Annika Schleu; a atleta abandonou a prova aos prantos. “Ela estava liderando. Se termina bem o percurso, era pódio certo”, recorda Fagundes. As imagens rodaram o mundo e provocaram a ira dos militantes pelos direitos dos animais, que há tempos pedem o fim de qualquer prova olímpica que inclua cavalos, seja essa parte do pentatlo moderno, seja o hipismo como um todo – para piorar, um outro cavalo, na prova de cross-country, se lesionou e teve de ser sacrificado.

“Talvez o COI esteja preocupado com possíveis maus-tratos, por questões de imagem, mas a verdade é que os atletas cuidam muito bem dos animais.”

Danilo Fagundes, pentatleta medalhista no Mundial Militar de 2021.

Pela cronologia do episódio, que acompanhei pelo site insidethegames, no início de novembro surgiu a notícia de que o Comitê Executivo da UIPM havia votado pela remoção da prova de saltos, alegando que, se isso não fosse feito, o COI retiraria o pentatlo moderno do programa de Los Angeles-2028, que será definido em dezembro (o COI, até agora, não confirmou nem negou qualquer pressão para que o pentatlo moderno fosse alterado). Para amenizar a indignação dos atletas, Schormann prometeu uma consulta sobre que prova deveria substituir o hipismo (segundo a boataria, o mais cotado era o ciclismo), mas apenas dois dias depois ele afirmou a um programa televisivo alemão que a nova competição já estava definida, que não seria o ciclismo, mas que ele não anteciparia nada. Logo na sequência, Schormann recuou e disse que não havia nada definido sobre a nova prova, convidando atletas para uma reunião do Comitê Executivo marcada para esta sexta-feira, mesmo dia em que Schormann deve se encontrar com Thomas Bach. Está na cara, então, que não houve consulta alguma e tudo está sendo definido por, no máximo, uma panelinha bem seleta. “Todos estão muito chateados, porque não fomos consultados em nenhum momento”, diz Fagundes.

Os atletas têm toda a razão de estarem enfurecidos. Mas
vamos supor, por um momento, que a UIPM estivesse fazendo tudo da forma mais
transparente possível; ainda assim, faria sentido tirar o hipismo?

Sem crueldade, nem “injustiça”

Fagundes rechaça completamente a alegação de que o hipismo
não tem lugar no pentatlo moderno por causa do tratamento dado aos cavalos. “Talvez
o COI esteja preocupado com isso, por questões de imagem, mas a verdade é que
os atletas cuidam muito bem dos animais”, afirma o atleta. O caso de Raisner é
um ponto completamente fora da curva, e todos conhecem o ditado, o abuso não
tolhe o uso.

O atleta brasileiro acredita que apenas a militância não seria suficiente para forçar uma mudança tão radical. “Acho que há outras questões aí, como o custo do uso dos cavalos”, afirma. Ao contrário do hipismo olímpico, em que os atletas competem com os mesmos cavalos com os quais convivem e treinam, no pentatlo moderno os cavalos vêm de criadores locais, da região onde ocorre a competição. O diretor financeiro da Confederação Brasileira de Pentatlo Moderno, Helio Meirelles, explica que isso cria uma série de despesas para a organização do evento, como o aluguel dos animais, transporte, alimentação e cuidados veterinários, incluindo a necessidade de quarentenas para que cavalos de hípicas diferentes não se contaminem uns aos outros quando estiverem juntos na competição. Ele ainda acrescenta que esses gastos, necessários não apenas nas competições, mas também nos treinamentos, impedem que o pentatlo se popularize. “Na África, por exemplo, só África do Sul e Egito praticam o pentatlo moderno com alto rendimento”, exemplifica.

Além do custo, há um fator “loteria”: os cavalos são atribuídos aos competidores por sorteio; atletas e animais têm apenas 20 minutos para se conhecer melhor antes de competirem. Pode soar injusto porque um bom atleta pode receber um cavalo que não esteja em um dia bom, mas Fagundes diz que os pentatletas não costumam se incomodar com isso. “Nós já treinamos com cavalos diferentes, e mesmo aquele animal com quem estamos mais acostumados não se comporta sempre da mesma forma todos os dias; depende do que ele comeu, de como descansou, de muitos fatores”, explica. Diz a Wikipedia que o sorteio tinha sido previsto pelo barão de Coubertin, já que um soldado em combate pega o cavalo que estiver à disposição, não o que ele traz de casa – embora, nos primórdios do esporte, os militares participantes pudessem usar os próprios cavalos.

Essa seria uma solução? Fagundes afirma que não, pela inviabilidade financeira de se manter e transportar um animal, mas ele também não acredita que os problemas recentes sejam culpa do sorteio, dos animais ou dos atletas. “Em Tóquio houve essa percepção de que os cavalos estavam refugando mais que o normal, mas foi porque a prova estava exigente demais”, diz o atleta. “Tudo isso, o sorteio, o pouco tempo para atleta e cavalo se acostumarem um com o outro, a possibilidade de alguém pegar um cavalo mais arisco, pode ser amenizado com obstáculos mais baixos e percursos mais simples”, acrescenta Fagundes. Não se trata de nivelar por baixo, mas de dar mais condições para que todos tenham sua chance de fazer o melhor sem correr o risco de acabar como Annika Schleu – que, aliás, não foi a única a ficar na mão com Saint Boy em Tóquio. Ou seja, há outros meios de reduzir, se não eliminar, o que alguns podem perceber como uma “injustiça” do esporte.

O pentatleta brasileiro Danilo Fagundes assinou carta criticando a cúpula da UIPM. (Foto: UIPM World Pentathlon/Filip Komorous)
O pentatleta brasileiro Danilo Fagundes assinou carta criticando a cúpula da UIPM. (Foto: UIPM World Pentathlon/Filip Komorous)

Pentatlo moderno já esteve perto de sair dos Jogos Olímpicos

Curiosamente, apesar de ser cria do pai dos Jogos Olímpicos
modernos, o pentatlo moderno anda na berlinda bem antes de qualquer
controvérsia com animais. A competição durava vários dias, fazendo dele um
esporte pouco “amigável” para se acompanhar pela televisão ou no local do
evento. Só em 1996 as cinco provas foram encurtadas para que tudo coubesse em
um único dia, e a mudança mais recente, em 2009, foi o laser run, que
passou a combinar a corrida e o tiro – um “biatlo dentro do pentatlo”, por
assim dizer. Já era uma mudança considerável: afinal, uma coisa é você ir para
um estande de tiro, tranquilo, fazer a mira e atirar; outra é você ter de
correr um bocado, parar de repente, pegar uma pistola a laser e tentar acertar
o alvo com os batimentos cardíacos à toda, voltar a correr, parar mais uma vez
para atirar, etc. “Quando juntaram a corrida e o tiro, houve alguma
preocupação, mas o laser run é interessante, sim”, defende Fagundes.

Mesmo assim, em 2013 o pentatlo moderno quase saiu do programa olímpico de 2020. O COI decidira remover um esporte para abrir espaço para novas modalidades, e muita gente achava que a vítima seria o pentatlo; surpreendentemente, a votação levou à remoção da luta olímpica – o que, convenhamos, era um absurdo, já que se trata de um esporte tradicionalíssimo, praticado já na Grécia Antiga e presente desde a primeira edição dos Jogos modernos. Três meses depois, o COI votou a inclusão de um esporte, e a luta recuperou seu lugar. Agora, o pentatlo moderno, que está garantido em Paris-2024, com hipismo e tudo, volta a correr risco.

“Tudo isso, o sorteio, o pouco tempo para atleta e cavalo se acostumarem um com o outro, a possibilidade de alguém pegar um cavalo mais arisco, pode ser amenizado com obstáculos mais baixos e percursos mais simples.”

Danilo Fagundes

“É muito complicado, porque o pentatlo moderno só se sustenta se estiver nos Jogos Olímpicos”, diz Danilo Fagundes. O diretor financeiro da CBPM diz que a UIPM só se sustenta com as cotas que recebe do COI por ser esporte olímpico: “mesmo os principais patrocinadores da UIPM não entram nem com 3% do que a federação internacional recebe do COI”, diz Meirelles. Seguir no programa olímpico, portanto, é vital para o esporte não se tornar “uma diversão”, nas suas palavras. Se o COI realmente estiver condicionando essa manutenção à retirada da prova de saltos, parece não haver muita escolha, para a decepção dos atletas e de muitos fãs. “Tirar o hipismo é atacar a essência do esporte”, diz Danilo Fagundes. Se a mudança for confirmada, o brasileiro prevê uma debandada de atletas depois de Paris – especialmente os mais experientes, que não terão tempo ou disposição para aprender uma nova habilidade, seja ela qual for. “Difícil prever se irão reverter a mudança; talvez se houver alguma rebelião grande dos atletas, boicotes a etapas da Copa do Mundo... é uma pena, porque demorou muito para conseguirmos finalmente entrar na mídia, e agora vem um baque desses”, lamenta.

Se o pentatlo moderno virar mesmo um “pentatlo modernizado”, mandando às favas à tradição e ignorando que há bons argumentos para se manter o hipismo, a minha modesta proposta ao COI é radicalizar de vez e adotar o “pentatlo hipermoderno”: skate, surfe, escalada, breakdancing e um e-sport qualquer...

Falando em Prêmio Brasil Olímpico...

Além dos destaques de cada modalidade, o COB também premiará, em cerimônia marcada para 7 de dezembro em Aracaju (SE), o Melhor Atleta do Ano e o Atleta da Torcida. Os concorrentes a este segundo prêmio, definido por votação popular, só serão divulgados no domingo, enquanto os indicados a Melhor Atleta do Ano, todos medalhistas em Tóquio, foram anunciados nesta quinta-feira: no feminino, Ana Marcela Cunha (maratona aquática), Rebeca Andrade (ginástica artística) e Rayssa Leal (skate); no masculino, Hebert Conceição (boxe), Isaquias Queiroz (canoagem de velocidade) e Ítalo Ferreira (surfe). Esse é o caso perfeito em que qualquer escolha será justa, mas os meus preferidos são Rebeca e Isaquias.

Veja também:
Destacado por jornal espanhol, capitão na base: conheça o novo lateral do Coritiba
Destacado por jornal espanhol, capitão na base: conheça o novo lateral do Coritiba
Coritiba estreia e Athletico levou choque de realidade
Coritiba estreia e Athletico levou choque de realidade
Titulares com Osorio perdem espaço após chegada de Cuca no Athletico
Titulares com Osorio perdem espaço após chegada de Cuca no Athletico
Coritiba tem o segundo elenco mais valioso e o mais jovem da Série B
Coritiba tem o segundo elenco mais valioso e o mais jovem da Série B
participe da conversa
compartilhe
Encontrou algo errado na matéria?
Avise-nos
+ Notícias sobre Papo Olímpico
Como a Copa pode ajudar ou atrapalhar as pretensões olímpicas do Catar
Jogos Olímpicos de 2036

Como a Copa pode ajudar ou atrapalhar as pretensões olímpicas do Catar

Como proporcionar uma grande experiência olímpica aos voluntários
Entrevista

Como proporcionar uma grande experiência olímpica aos voluntários

Russos fazem o mundo esportivo de otário mais uma vez
Kamila Valieva

Russos fazem o mundo esportivo de otário mais uma vez