Muito mais que um filme de surfe: “Onda de 100 Pés”, uma saga de conquista e loucura em Nazaré
Os cabelos brancos e os 54 anos de idade não impedem o veterano surfista Garrett McNamara de entrar em uma espécie de transe quando alguém lhe pede para descrever a sensação de surfar uma onda gigante.
Com os olhos vidrados, o norte-americano invoca uma série de gestos incompreensíveis com as mãos e emite sons estranhos com a boca, tentando imitar o barulho do mar quebrando sobre sua cabeça.
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Nestes momentos, é como se ele não estivesse mais ali, mas sim transportado para um devaneio distante, em algum quebra-mar idílico e mortal. Paixão e loucura que são o ponto de partida para o documentário Onda de 100 Pés, disponível no Brasil no serviço de streaming HBO Max.
A produção vai além do estereótipo que define parte da filmografia do surfe, resumida a picos paradisíacos, ondas azul-turquesa perfeitas, trilhas sonoras eletrizantes e jovens sem camisa fazendo hang loose com as mãos, entre palmeiras e areias brancas. Um banquete visual e sonoro que se repete sem fim. E que para por aí.
Pelo contrário, a série da HBO é um mergulho profundo nos sonhos e demônios de McNamara, ele próprio um tipo de surfista outsider, por anos ofuscado pelo midiático e competitivo irmão Liam, espécie de badboy do surfe, ignorado pelas grandes revistas e que chegou a levar a vida como um pacato comerciante e pai de família antes de ser redescoberto pelo mundo do surfe ao domar Nazaré.
O documentário é também uma interessante história de respeito, conquista e medo, entre McNamara e a onda gigante, na pequena vila de pescadores em Portugal até então "desconhecida" do restante do mundo.
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O local é aterrorizante: ali, no frio e na chuva, um profundo cânion submerso engole o mar e cria séries de ondas monstruosas que chegam a fazer as casas próximas tremer em noites de tempestade. As impiedosas paredes de água parecem que vão estourar diretamente no antigo farol sobre o penhasco em frente à praia.
No decorrer dos episódios, acompanhamos a chegada de McNamara a Nazaré, em 2010, a convite de autoridades locais que buscavam explorar o potencial da onda como destino mundial do surfe profissional, até a quebra do recorde de maior onda surfada na história, em 2013, e a “descoberta” do pico pelos demais surfistas de ondas grandes.
Destaque negativo para o time brasileiro formado por Pedro Scooby, Carlos Burle e Maya Gabeira, um dos primeiros a visitar o local após a "descoberta" de McNamara, em 2013.
Enquanto o gringo dedicou meses de estudo antes de se arriscar em Nazaré, os brasileiros caíram no mar sem pedir um conselho sequer, para a estupefação do veterano surfista, que havia desenvolvido toda uma técnica de resgates e olheiros para tornar a experiência mais segura.
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O resultado foi trágico: logo de cara, um acidente quase resultou na morte de Maya, que chegou a ficar desacordada e foi levada às pressas em uma ambulância para o hospital local, enquanto Scooby e Burle seguiram em uma busca meio macabra por suas próprias ondas inesquecíveis, sem saber se a companheira estava viva ou morta - em entrevistas posteriores, Maya acusa Burle pelo acidente, enquanto o veterano surfista se defende.
Após o trauma, Maya voltaria a Nazaré em 2018 e quebraria o recorde mundial feminino de ondas gigantes. O recorde masculino já havia sido quebrado pelo também brasileiro Rodrigo Coxa, em 2017, uma parede de quase 25 metros de altura.
Mas estes são apenas detalhes da produção, cujo foco principal é desvendar a eletrizante e inquieta essência de um indivíduo como McNamara, viciado em adrenalina, incapaz de resistir a um novo swell gigante, mesmo torturado por saber que arriscará a vida no mar enquanto deixa filhos pequenos e a esposa em casa - ele enfrenta pelo menos dois acidentes quase fatais no período de filmagens.
É também a história do relacionamento entre um homem e uma onda, capaz de transformar para sempre a vida de uma cidadezinha pacata de litoral. Antes de McNamara, os monstros de Nazaré eram apenas sinônimo de luto para as famílias locais que perderam familiares pescadores sugados pelo mar.
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Hoje, dez anos depois, são reconhecidas como um dos principais picos de ondas grandes do surfe mundial. O turismo na cidade explodiu. É em meio a este enredo intrigante que Onda de 100 Pés extrapola, e muito, a categoria de filme de surfe para ganhar contornos universais.
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