Depoimentos até então inéditos a respeito do que aconteceu na noite de 31 de dezembro na boate Sutton Barcelona tiveram seu teor divulgados nesta terça (24) pelo jornal La Vanguardia, na Espanha.

O jogador de futebol brasileiro Daniel Alves é acusado por uma jovem de 23 anos de tê-la estuprado no banheiro da boate. Ele nega a agressão e, após duas versões anteriores, passou a afirmar que houve relação consensual.

Na informação mais relevante divulgada agora, uma amiga que acompanhava a suposta vítima afirmou à polícia, segundo o jornal, que Alves a apalpou violentamente e que passou a mão em suas partes íntimas até que ela conseguiu se desvencilhar e ir embora.

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Essa declaração coincide com o depoimento da vítima, que havia dito que, após entrar na área VIP onde estava Alves, “imediatamente ele começou a flertar com nós três, grudando muito em nós e nos tocando.”

Entre as pessoas ouvidas também estão o amigo que chegou com o jogador às 2h da manhã na boate, identificado como um chef de cozinha brasileiro.

Segundo o jornal, ele entrou em contato com a prima da vítima por meio da rede social Instagram e se ofereceu para “o que elas precisassem”. Prints dessa conversação foram entregues aos policiais.

Esses depoimentos fizeram parte do trabalho da polícia catalã Mossos d’Esquadra entre os dias 31 de dezembro e 20 de janeiro, quando Alves foi preso pela manhã após se apresentar voluntariamente em uma delegacia de crimes sexuais.

Na ocasião, a polícia não revelou ao jogador que já havia colhido depoimentos e que possuía provas de que, de fato, havia acontecido uma relação sexual na boate – -o que Alves negou até ser confrontado por elas.

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Mas, após conversar com a jovem ainda na madrugada de 31 de dezembro, e principalmente depois da denúncia mais detalhada apresentada no dia 2 de janeiro, policiais da Unidade Contra Violência Sexual (UCAS) colheram os relatos de dezenas de pessoas que estiveram na Sutton.

Falaram com clientes, com o funcionário que chamou a polícia, com o porteiro da boate, que percebeu que a jovem passava por um ataque de ansiedade ao querer ir embora, e ainda com o garçom, que por duas vezes insistiu para que as três amigas fossem à área VIP de Daniel Alves, por se tratar de “um amigo”.

Nesta sexta, a equipe de Alves contratou um advogado especializado em direito penal para se juntar à estratégia de defesa. Há um limite de tempo até esta quinta-feira para apresentar recurso pedindo sua liberdade.

Alves está desde sexta-feira no centro penitenciário Brians, na periferia noroeste de Barcelona, preso preventivamente por risco de fuga. Segundo as últimas informações de Barcelona, ele divide a cela com um “preso de confiança” da administração no prédio Brians 2, onde outros acusados de crimes sexuais pagam pena ou aguardam julgamento.

Suas contradições durante o depoimento, no qual ofereceu versões diferentes à medida que novas provas lhe eram expostas (descrição de tatuagem e imagens de câmeras de segurança, por exemplo), foram um dos motivos pelos quais a juíza Maria Concepción Canton Martín decidiu prendê-lo.

Protocolo para casos de abuso sexual em Barcelona garantiu agilidade no caso Daniel Alves

A prisão preventiva do jogador de futebol Daniel Alves, acusado de estuprar uma jovem de 23 anos dentro da balada Sutton, em Barcelona, na Espanha, surpreendeu entidades ligadas à luta contra a violência sexual pela agilidade com que foi conduzida. O atleta nega o crime.

Diferente do país europeu, no Brasil, segundo especialistas, denunciar um episódio de abuso sexual, na maioria das vezes, é um processo longo e desgastante. Não é raro que a vítima desista ou até seja processada pelo abusador por difamação e danos morais.

Em nota, o Me Too Brasil, organização que acolhe vítimas de violência sexual, disse lamentar a ocorrência de mais uma violência de gênero cometida por jogadores brasileiros no exterior. A organização cita ainda que o caso mostra a importância da agilidade na denúncia, coleta de provas e de testemunhos, além da prisão prisão preventiva de acusados de assédio e violência sexual.

“Isso não acontece usualmente no sistema penal brasileiro, onde as vozes das vítimas muitas vezes não são consideradas e são, até mesmo, silenciadas”, alerta a organização.

A Espanha é considerada uma referência na luta contra a violência sexual e pela igualdade de gênero.

Em Barcelona, onde ocorreu o caso, foi criado um protocolo de segurança que visa o controle de violências sexuais em ambientes de lazer. O documento, desenvolvido em 2018 e chamado de “No Callem”, detalha como espaços privados devem agir para prevenir e agir no caso de agressões dentro dos estabelecimentos.

A lista de procedimentos foi criada após a divulgação de uma pesquisa, em 2016, que mostrava que estabelecimentos de lazer estão entre os três cenários mais recorrentes de registros de casos de violências sexuais.

Jornais espanhóis afirmam que o protocolo “No Callem” foi aplicado no episódio que envolveu o jogador. Na ocasião, a polícia recebeu o aviso da ocorrência, foi até a balada e ouviu a vítima, que foi levada a serviço médico de emergência.

No documento são descritos diferentes cenários possíveis e como conduzi-los.

No caso de agressão sexual, o protocolo determina que a vítima deve ser acolhida o mais rápido possível, e profissionais do local devem verificar se ela não corre algum tipo de perigo imediato.

A vítima deve ser levada para um espaço isolado. Se ela não estiver em condições de compreender a situação, a pessoa que realiza o atendimento pode sugerir que ela tenha um acompanhante.

Em seguida, a vítima deve ser consultada se gostaria de atendimento médico e informada de que o acesso ao serviço de saúde não implica, necessariamente, em uma denúncia formal.

Caso a pessoa opte por não denunciar, ela deve ser orientada a procurar um serviço de saúde médico para atendimento psicológico e de emergência.

O documento diz ainda que vítima que decidir formalizar a denúncia deve ir acompanhada. Em relação ao abusador, o protocolo define que o estabelecimento pode mantê-lo detido até a chegada da polícia, caso seja pego em flagrante ou prestes a cometer o crime.

Se o suspeito não for encontrado na hora, a vítima pode descrevê-lo para que profissionais do estabelecimento façam buscas. Além disso, em diversos momentos, o documento reforça que o principal em casos de agressão é acolher a vítima -e não repreender o crime.

O documento não se limita a descrever como agir no caso de episódios de agressão sexual, mas também lista medidas de prevenção. Entre elas, estão o reforço da vigilância em locais mais escuros. Também desincentiva medidas que diferenciem a entrada de homens e mulheres, como ingresso mais barato ou gratuidade.

O documento prevê que não deve existir discriminação de vestimenta ou proibição de entrada de acordo com a aparência. Além disso, são refutados cartazes promocionais para os locais em que apresentem mulheres apenas como objetos de desejo sexual ou imagens que mostrem elas em posições depreciativas, de subordinação ou de incitação à violência.

Além do protocolo, em agosto do ano passado, foi aprovada a Lei da Liberdade Sexual, conhecida como lei “solo sí es sí” (só sim é sim), que elimina distinções entre abuso e agressão sexual e passa a considerar toda intenção sexual sem consentimento com outra pessoa como uma agressão.

A mudança na nomenclatura veio acompanhada de um detalhamento maior das possíveis penas. A medida foi inspirada no caso conhecido como La Manada, quando cinco homens estupraram uma jovem de 18 anos nas festas de São Firmino, em Pamplona, em 2016, e gravaram as cenas. Eles foram inicialmente condenados por abuso sexual após entendimento da Justiça de que não houve violência.

Apesar de ter sido considerada uma vitória para o governo do premiê Pedro Sánchez, em pouco tempo a lei foi criticada pois abriu brecha para uma enxurrada de revisão de penas no país europeu. Isso porque, após poucos meses em vigor, homens condenados por estupro tiveram penas reduzidas e alguns foram até libertados.

Em relação às críticas, a ministra da Igualdade da Espanha, Irene Montero, disse que o problema tem como causa juízes que infringem a lei motivados por concepções machistas. Ela defendeu que é preciso aprimorar a formação dos magistrados.

Advogada à frente do Me Too Brasil, Mariana Garanzolli afirma que, apesar das críticas à recente lei, a Espanha vem avançado nos últimos anos como referência no combate à violência sexual. No Brasil, diz ela, diferente da violência doméstica, a sexual não tem tido tantos avanços.

“Nós temos discutido cada vez mais que a ausência de consentimento é uma violência em si. Porém a compreensão é pela jurisprudência no Brasil. Na Espanha, isso está mais avançado”, diz Ganzarolli

Segundo a advogada, a mulher pode não dizer não porque ficou intimidada pela presença, olhar ou tamanho do abusador. “As vezes, ele encurralou ela. A pessoa pode congelar, ficar parada. A ausência do ‘não’ não é sinônimo de consentimento. Para ter uma agressão não precisa do emprego de violência e nem de força”, diz ela.