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Juan Antonio Samaranch salvou ou destruiu os Jogos Olímpicos?

Por
Marcio Antonio Campos
01/02/2022 17:44 - Atualizado: 04/10/2023 17:00
Juan Antonio Samaranch durante os Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000, os últimos que ele supervisionou à frente do COI: salvador ou destruidor do movimento olímpico?
Juan Antonio Samaranch durante os Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000, os últimos que ele supervisionou à frente do COI: salvador ou destruidor do movimento olímpico? | Foto: Emilio Morenatti/EFE

Nesta última coluna antes que comecem os Jogos Olímpicos de
Inverno de Pequim, recordamos Andrew Jennings, o jornalista investigativo
britânico que morreu no começo de janeiro. A maioria dos brasileiros que
conhece o seu trabalho o associa às denúncias de ladroagem na Fifa, assunto de
seus livros Jogo Sujo e Um Jogo Cada Vez Mais Sujo, essenciais
para quem gosta de futebol. Mas, antes de expor a sujeira na cúpula do futebol
mundial, Jennings se dedicou a vasculhar o movimento olímpico. E o retrato que
ele pintou foi igualmente deprimente.

The Lords of the Rings, escrito em coautoria
com Vyv Simson, foi lançado pouco antes dos Jogos de Barcelona, em 1992; The
New Lords of the Rings
saiu quatro anos depois, às vésperas de
Atlanta-96. Há, ainda, The Great Olympic Swindle, de 2000, que
não li. O título do segundo livro ilude um pouco: na verdade, os personagens
principais são basicamente os mesmos; no máximo, aparece alguém que não coube
no primeiro livro, mas já vinha aprontando junto com os protagonistas
anteriores. Gente “nova” mesmo, como Jacques Rogge e Thomas Bach, aparece
apenas de passagem. Os dois livros têm a mesma estrutura: intercalam perfis
biográficos com histórias escabrosas envolvendo o movimento olímpico. Como
Jennings pressupõe que nem todos os leitores do segundo livro conhecem o
primeiro, ele repete algumas biografias e histórias em The New Lords of the
Rings
, às vezes acrescentando detalhes, às vezes resumindo. Não há uma
ordem cronológica, as descrições vêm e vão no tempo.

Basicamente, Andrew Jennings descreve Juan Antonio Samaranch como um Sauron, um Imperador Palpatine do esporte

Obviamente, o personagem dominante nos dois livros é Juan Antonio Samaranch, que foi presidente do COI entre 1980 e 2001. Basicamente, Jennings descreve Samaranch como um Sauron, um Imperador Palpatine do esporte: alguém que, depois de uma carreira dedicada a servir o regime fascista de Francisco Franco na Espanha, se reinventou com o fim da ditadura e encontrou seu lugar no COI. Com a ajuda de Horst Dassler, chefão da Adidas que se tornou um puppet master do mundo dos esportes, chegou ao comando do movimento olímpico e o transformou na sua pequena ditadura pessoal, cooptando os comitês olímpicos nacionais e as federações esportivas internacionais (que deveriam coibir os eventuais excessos do COI), e escolhendo membros subservientes, prontos a carimbar qualquer ideia sua. E, talvez acima de tudo, Samaranch é apontado por Jennings como o homem que, ao lado de Dassler, prostituiu os Jogos Olímpicos, fazendo deles um mero show, deixando que o dinheiro dos grandes patrocinadores e das emissoras de televisão desse as cartas. Essa chuva de dinheiro no COI e nas federações internacionais, por sua vez, é gasta em extravagâncias como o Museu Olímpico e eventos suntuosos, em vez de ajudar atletas de países pobres; e atraiu para o mundo do esporte gente inescrupulosa e corrupta que até então tinha pouco ou nenhum incentivo para se aventurar na gestão esportiva.

Samaranch tem os seus nazgûl, seus aprendizes Sith; eles incluem, por exemplo, o mexicano Mário Vázquez Raña, presidente da Associação dos Comitês Olímpicos Nacionais e da PanAm Sports (a antiga Odepa); o sul-coreano Kim Un-Yong, apelidado “Mickey Kim”, que deu um golpe no taekwondo mundial impondo sua própria entidade e escanteando os grandes mestres do esporte; o paquistanês Anwar Chowdhry, presidente da Aiba, a federação internacional de boxe amador; o norte-americano Robert Helmick, presidente da Federação Internacional de Esportes Aquáticos e do Comitê Olímpico dos Estados Unidos; o kuwaitiano Fahd Al-Ahmed Al-Jaber Al-Sabah, “dono” do Conselho Olímpico da Ásia; e o italiano Primo Nebiolo, presidente da Federação Internacional de Atletismo.

Mario Vázquez Raña (esq.) e Samaranch (dir.) durante a assembleia do COI em 2007. Foto: EFE/Roberto Escobar
Mario Vázquez Raña (esq.) e Samaranch (dir.) durante a assembleia do COI em 2007. Foto: EFE/Roberto Escobar

Alguns desses
coadjuvantes dos livros de Jennings se contentavam em fazer o que o chefe mandava
enquanto sugavam seus feudos; outros tinham os próprios projetos de poder,
curvando-se a Samaranch na esperança de conquistar sua preferência para
sucedê-lo; e houve quem tivesse até enfrentado o COI por interesse próprio,
como Nebiolo. O italiano demorou para integrar o COI; por mais que Samaranch o
quisesse lá, havia resistência forte a seu nome entre os demais membros, e só
em 1992 Nebiolo se juntou ao clube por um ato unilateral de Samaranch. Mas,
antes disso, como represália, o italiano tentou fazer do campeonato mundial de
atletismo um evento maior que os Jogos Olímpicos – sabem a insistência de
Gianni Infantino, da Fifa, em fazer a Copa do Mundo a cada dois anos? Pois ela
não é nada nova...

As histórias de terror que Jennings narra incluem escândalos grotescos como a roubalheira no boxe olímpico em Seul-1988 (cortesia de Kim e Chowdhry) e a armação orquestrada por Nebiolo para fraudar um sistema de medição eletrônica e dar uma medalha a um italiano no salto em distância em 1987, quando Roma sediou o campeonato mundial de atletismo. O autor conta como o COI fechou os olhos enquanto Al-Sabah sequestrava o movimento olímpico na Ásia para excluir Israel das competições continentais. Há capítulos sobre a leniência do COI em relação ao doping, com direito a testes positivos que foram escondidos do público e a uma longa recusa em montar um sistema de testes surpresa durante o ciclo olímpico – a realização de exames antidoping apenas durante as competições garantia que só fossem pegos aqueles burros o suficiente para seguir se dopando até a véspera das provas, em vez de parar pouco antes e dar tempo ao organismo para se livrar das substâncias proibidas. Segundo Jennings, a epidemia de doping foi consequência da enxurrada de dinheiro no esporte: competição boa para o público, a tevê e os patrocinadores é aquela que tem quebras de recordes, e para isso os atletas tinham de trapacear para melhorar seu desempenho – e conquistar os próprios patrocínios, claro.

Há vários
capítulos dedicados às disputas entre cidades para sediar os Jogos Olímpicos. O
mote central é o de que vence não a melhor candidatura, mas aquela que compra
os votos dos membros do COI com presentinhos e, principalmente, presentões
(como quase todas jogam o jogo, às vezes acontece de o vencedor ser também o
melhor projeto...). O COI finge impor moralidade estabelecendo regras para
serem seguidas pelas candidaturas, mas nada faz para frear os ânimos dos seus
integrantes – e eles eram insaciáveis, pedindo até favores sexuais e bolsas de
estudo em universidade para os filhos. Jennings ainda acusa Samaranch de
direcionar as votações nos bastidores, manifestando suas preferências, algumas
delas bastante questionáveis: Pequim era a favorita do espanhol para 2000 até
estourar um escândalo de doping que mudou a maré em favor de Sydney. Lendo
todas as histórias, por mais que eu veja problemas no novo método de escolha de
sedes, não dá para não pensar que a mudança foi mesmo acertada...

Como no raciocínio de Jennings o dinheiro é a fonte de todo
o mal olímpico, ele encerra o primeiro livro com uma defesa do retorno ao
amadorismo. Aqui, a meu ver, a sagacidade do repórter investigativo dá lugar a
uma certa ingenuidade. Primeiro, porque a Cortina de Ferro mostrou que o
amadorismo pode ser apenas de fachada. Segundo, porque os Jogos Olímpicos são a
celebração do melhor do esporte mundial, e esse melhor não deveria excluir
gente que faz do seu talento esportivo (às vezes, o seu único talento) o
seu ganha-pão. Vetar totalmente os profissionais negaria a alguns dos melhores
atletas do mundo a possibilidade de estar no maior evento esportivo do mundo, e
negaria a muitos torcedores a chance de ver esses atletas em ação. E, ao privar
um atleta da possibilidade de ir aos Jogos e da visibilidade que se alcança
sendo um atleta olímpico, até o potencial do esporte como meio de ascensão
social ficaria minimizado – porque, convenhamos, o amadorismo esportivo “das
antigas” não deixava de ser um pouco elitista, coisa para quem não precisava
esquentar a cabeça pensando em como pagar os boletos e podia se dedicar à
atividade física. O problema não é o profissionalismo ou o amadorismo, mas o
caráter de quem está envolvido no esporte.

O Samaranch de Andrew Jennings destruiu os Jogos Olímpicos ao trazer o dinheiro; o Samaranch de Michael Payne salvou (é esse o termo que ele usa) os Jogos Olímpicos ao trazer o dinheiro

Um exercício interessante é ler os livros de Jennings junto com A Virada Olímpica, de Michael Payne. Ele foi diretor de Marketing do COI entre 1983 e 2004 e mostra “por dentro” aquilo que Jennings condena do lado “de fora”. O subtítulo do livro é “Como os Jogos Olímpicos tornaram-se a marca mais valorizada do mundo”, e o foco é exatamente esse, a construção da “marca” olímpica: a história dos programas de patrocínio e da venda dos direitos televisivos, o conceito de “arenas limpas”, a criação de campanhas memoráveis como a Celebrate Humanity, o combate ao marketing de emboscada, essas coisas. Eu mesmo tive uma experiência pessoal a esse respeito: meu primeiríssimo dia como voluntário de Operações de Imprensa em Turim-2006 foi gasto retirando pequenos adesivos que identificavam o fabricante das cercas plásticas azuis que delimitavam a zona mista da área de competição do esqui alpino.

Há vários pontos em que Jennings e Payne se chocam: você pode comparar, por exemplo, a maneira como ambos descrevem Horst Dassler (que fora chefe de Payne antes de ele ir para o COI); ou os relatos de como foi criado o TOP, o programa de “patrocínios master” que existe até hoje. Mas a diferença essencial entre os dois autores está no retrato que eles fazem do grande protagonista. O Samaranch de Jennings destruiu os Jogos Olímpicos ao trazer o dinheiro; o Samaranch de Payne salvou (é esse o termo que ele usa) os Jogos Olímpicos ao trazer o dinheiro. Em A Virada Olímpica, o espanhol pegou um COI quase falido (o que Jennings contesta, apoiando-se nas memórias de Lord Killanin, presidente da entidade até 1981) e uma competição que ninguém mais queria receber depois dos boicotes e prejuízos como o de Montreal-76, transformando o movimento olímpico e a competição que ele promove. Se em 1981 apenas Seul e Nagoya, no Japão, disputaram o direito de sediar os Jogos de 1988, apenas cinco anos depois Barcelona precisou disputar com Amsterdã, Belgrado (Iugoslávia), Birmingham (Reino Unido), Brisbane (Austrália) e Paris para ter os Jogos de 1992 – uma mudança notável.

O colunista (de gorro) recolhendo adesivos do fabricante das cercas plásticas da zona mista em Turim-2006: tudo em nome da "arena limpa". (Foto: Arquivo pessoal)
O colunista (de gorro) recolhendo adesivos do fabricante das cercas plásticas da zona mista em Turim-2006: tudo em nome da "arena limpa". (Foto: Arquivo pessoal)

Mesmo escrevendo anos depois de Jennings, Payne não está interessado em responder às acusações do jornalista. O doping é mencionado muito brevemente, de forma genérica, no fim do livro, e não há uma palavra sobre manipulação de resultados ou o passado fascista de Samaranch. O único escândalo que aparece é ligado às candidaturas das cidades-sede – no caso, um que Jennings nem chegou a colocar em seus livros, porque estourou apenas em 2001: a compra de votos para a escolha de Salt Lake City como sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2002, após a cidade norte-americana ter perdido a disputa para Nagano pela competição de 1998 (uma briga que Payne menciona apenas brevemente, mas que Jennings narra com detalhe). E mesmo assim a ênfase de Payne não está em quem recebeu quais subornos, quem ofereceu o quê, mas em como o caso abalou a marca olímpica e como o COI remou para recuperar sua imagem. De resto, tudo o que dá errado no livro de Payne – o fiasco do sistema de resultados em tempo real da IBM em Atlanta e o caos urbano causado pelo excesso de ambulantes na mesma cidade, por exemplo – nunca é culpa do COI, mas dos outros.

Entre dois relatos tão díspares, onde estará a verdade? Sim,
há muitos pilantras na cartolagem esportiva em todo o mundo; compra de votos
por parte de cidades candidatas e manipulação de resultados são um fato; os trapaceiros
parecem estar sempre um passo à frente das agências antidoping. Mas os Jogos
Olímpicos teriam se tornado este megafenômeno global, que inspira pessoas em
todo o mundo, se não tivessem ido buscar os meios – inclusive financeiros –
para se sustentar? Tenho sérias dúvidas sobre a viabilidade do modelo pré-1980
no mundo atual. E aí é preciso reconhecer o mérito de Samaranch, ainda que isso
não apague seus podres.

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