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Biografia

Como Elise Christie enfrentou seus demônios

Por
Marcio Antonio Campos
17/01/2022 12:00 - Atualizado: 04/10/2023 17:03
Elise Christie comemora após vencer sua corrida de quartas-de-final nos 1000 metros nos Jogos Olímpicos de Sochi, em 2014.
Elise Christie comemora após vencer sua corrida de quartas-de-final nos 1000 metros nos Jogos Olímpicos de Sochi, em 2014. | Foto: Barbara Walters/EFE/EPA

Toda edição de Jogos Olímpicos tem seus desfalques, estrelas que não competirão pelos mais diversos motivos. Pequim-2022, por exemplo, não terá Elise Christie: a britânica da patinação de velocidade em pista curta (ou short track), ex-campeã mundial e ex-recordista mundial, prejudicada por uma contusão, não foi bem nas provas classificatórias e já anunciou sua aposentadoria. Esse desfecho estava bem longe do fim que Elise desejava para a sua jornada, que ela narra na autobiografia Resilience, lançada no fim de setembro de 2021.

Quando escrevi aqui sobre a autobiografia de Nary Ly, disse que a história da cambojana “não é como a de outros atletas olímpicos cujas biografias estão por aí. Ela não despertou cedo para o esporte, não foi alguém cujo talento para alguma modalidade foi reconhecido e lapidado até se tornar um supercampeão”. Pois a carreira esportiva de Elise foi mais “convencional”: a menina que cresceu sem o pai e sofria bullying na escola por ser muito franzina se descobriu no gelo ainda criança, meio empurrada pela mãe. Começou na patinação artística aos 7 anos, mas aos 13 conheceu a patinação de velocidade e abraçou a nova modalidade. Rapidamente passou a vencer provas locais e se destacar em eventos nacionais; aos 15 anos, foi convidada para a seleção nacional, mudando de cidade – mais por decisão da mãe que dela própria. Aos 19, em 2010, ela conquistou sua primeira medalha em um campeonato europeu, mas foi apenas uma coadjuvante nos Jogos Olímpicos de Vancouver. Decepcionada após voltar do Canadá, ela e o técnico Nick Gooch montaram um plano de oito anos em busca de uma medalha olímpica.

Trocar a patinação artística pelo short track era o caminho natural para Elise, que se descreve como uma pessoa tremendamente lógica e afeita aos fatos: ela deixou uma modalidade baseada em notas e subjetividade para adotar outra em que, basicamente, quem chegar primeiro vence. E ela chegou em primeiro muitas, mas muitas vezes. Tornou-se a melhor do mundo no que fazia. Mas a subjetividade não a abandonaria; pelo contrário, ela retornou nos piores momentos possíveis, os mais importantes do seu plano de oito anos.

A subjetividade dos árbitros foi a protagonista da participação de Elise em Sochi, em 2014

Ao contrário da patinação de velocidade em pista longa, em que os competidores patinam cada um na sua raia e o campeão é quem completa o percurso no menor tempo, no short track os patinadores estão o tempo inteiro tentando ultrapassagens, esbarrando uns nos outros, e colisões não são raras. Há uma série de regras sobre como os competidores precisam se portar nessas horas, que linha devem manter, como podem defender sua posição ou atacar para conquistar uma. No papel é muito bonito, mas no fim das contas a decisão fica para os árbitros, que podem desclassificar um competidor ou mesmo avançar de fase alguém que foi prejudicado, dependendo de fatores como a posição em que estava e quantas voltas faltavam para o fim da corrida quando ocorreu a colisão. E a subjetividade dos árbitros foi a protagonista da participação de Elise em Sochi, em 2014, quando ela já era esperança de medalha para um país que nunca foi grande coisa em Jogos Olímpicos de Inverno.

Nos 500 metros, Elise terminou a final em segundo lugar, mas a arbitragem concluiu que ela havia sido a culpada de uma colisão com a italiana Arianna Fontana e a coreana Park Seung-hi. Nos 1.500 metros, a eliminação mais bizarra: na primeira rodada, a britânica venceu sua corrida, mas teria cruzado a linha de chegada um centímetro a mais para dentro do gelo e recebeu um DNF (“did not finish”), ainda que tivesse acionado o sensor eletrônico que marcou seu tempo (com precisão de milésimos de segundo) e lhe havia dado a vitória. E, nos 1.000 metros, ela foi derrubada pela chinesa Li Jianrou na última curva de sua semifinal; o choque permitiu que outra chinesa, Fan Kexin, pulasse do último para o segundo lugar (Fan acabaria levando o ouro na final). Em vez de ser avançada para a final, Elise foi punida junto com Li.

Arianna Fontana (ITA), Elise Christie (GBR) e Park Seung-Hi (KOR) colidem na final dos 500 metros em Sochi. Foto: How Hwee Young/EFE/EPA
Arianna Fontana (ITA), Elise Christie (GBR) e Park Seung-Hi (KOR) colidem na final dos 500 metros em Sochi. Foto: How Hwee Young/EFE/EPA

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Em Sochi, a britânica percebeu como as mídias sociais podiam ser destrutivas. Ela experimentou a cornetagem dos seus compatriotas e recebeu ameaças de morte de coreanos furiosos com a colisão na final dos 500 metros, pois Park era favoritíssima ao ouro e acabou com um bronze. Os acontecimentos de Sochi se somariam a uma série de outros eventos traumáticos ocorridos antes daqueles Jogos Olímpicos – especialmente um estupro sofrido em 2010, quando Elise foi vítima do golpe do “boa noite, Cinderela” (episódio que a atleta só tornou público ao lançar Resilience), e um incêndio em sua residência, em 2012 – e dispararam uma série de crises de ansiedade. As medalhas continuaram a vir em campeonatos europeus e mundiais, incluindo os ouros no Mundial de Roterdam, em 2017, feito inédito para um atleta britânico; a patinação não era apenas algo que Elise amava fazer e fazia muito bem, mas também era uma válvula de escape para esquecer de todo o resto – tinha sido assim desde a adolescência. Mesmo assim, algo não estava bem, e em um período de um ano e meio Elise foi do céu ao inferno.

Em meados de julho de 2017, Elise começou a sentir a perna direita. Sua equipe técnica afirmava que ela estava imaginando coisas e que era tudo apenas consequência de estresse; mesmo sentindo que havia algo errado, ela seguiu treinando e competindo – até que veio o rompimento muscular. Mesmo depois de se contundir, ela precisou brigar com meio mundo para comprovar que havia realmente se lesionado. E, mesmo depois de ter provado a todos que estava lesionada, seus superiores a forçaram a seguir competindo, afirmando que, caso parasse para se recuperar, ela não iria a PyeongChang, mesmo já estando qualificada para os Jogos Olímpicos. Na reta final de sua preparação, ela viveu entupida de todos os analgésicos, anti-inflamatórios e bloqueadores neuromusculares possíveis que não constituíssem doping. A eles se juntaram os antidepressivos. “Meus Jogos Olímpicos de 2018 estavam perdidos mesmo antes de eu colocar os pés na Coreia do Sul”, escreve Elise. Mas o público não sabia, e esperava medalhas da atleta mais badalada da delegação britânica em PyeongChang.

Mesmo contundida, Elise bateu o recorde olímpico dos 500 metros duas vezes; mas, na final, após um esbarrão entre ela e a canadense Kim Boutin – que, segundo Elise, havia sido ilegalmente avançada para a final após cair na semifinal –, a holandesa Yara van Kerkhof passou com os patins sobre a mão que Elise havia apoiado no chão para se equilibrar. Ela terminou a final em quinto e último lugar; a sul-coreana Choi Min-jeong foi desclassificada por um outro incidente, mas nem Boutin (bronze), nem Van Kerkhof (prata) foram punidas, deixando Elise fora do pódio. Na prova seguinte, os 1.500 metros, Elise chegou à semifinal; quando tentava a ultrapassagem que a deixaria em segundo lugar, classificando-a para a final, caiu junto com a chinesa Li Jinyu. Os árbitros puniram Elise e avançaram Li (que terminaria com a prata olímpica); mas, ainda que decidissem o contrário, de pouco adiantaria: a britânica também havia contundido o tornozelo direito (ou seja, na perna já contundida), sendo levada diretamente para o hospital. “Senti a maior dor que já havia sentido na vida”, afirma. Houve danos em ligamentos e tendões, mas tudo estava tão inchado que era difícil saber ao certo o tamanho do estrago.

Li Jinyu (CHN, capacete 136) cai no gelo e atinge Elise Christie (GBR, capacete 1) na semifinal dos 1.500 metros em PyeongChang-2018. Foto: How Hwee Young/EFE/EPA
Li Jinyu (CHN, capacete 136) cai no gelo e atinge Elise Christie (GBR, capacete 1) na semifinal dos 1.500 metros em PyeongChang-2018. Foto: How Hwee Young/EFE/EPA

Após um intervalo de dois dias, para espanto geral, Elise
estava de volta ao gelo para o ato final, os 1.000 metros. Na largada de sua
eliminatória, foi atingida no mesmo tornozelo e caiu sentindo ainda mais dor
que na semifinal dos 1.500 metros. As regras do esporte determinam uma
relargada quando há colisões na primeira volta; Elise confrontou o árbitro, que
a queria fora da prova, e ficou no gelo. Terminou a corrida em segundo lugar,
mas foi desclassificada com um cartão amarelo por ter cometido duas violações –
uma decisão que, segundo o relato de Elise, ninguém entendeu: nem as adversárias,
nem outros árbitros que estavam presentes no local. Mais uma vez, Elise chegara
aos Jogos Olímpicos entre as favoritas e saía sem nada.

Sem resultados em Jogos Olímpicos e mundiais (a contusão a impediu de disputar a edição de 2018), Elise foi informada de que teria sua bolsa reduzida. Em meados de 2018, sem a sua válvula de escape habitual, sua saúde mental se deteriorou de vez: do álcool, ela passou para a automutilação; o namorado a deixou, o técnico que a acompanhou por toda a sua carreira foi demitido, ela acumulava dívidas. Um corte mais profundo, que a mandou para o hospital, logo após o Natal de 2018, a acordou para o que estava fazendo com sua vida. Em abril de 2019, ela tornou públicos os seus problemas de saúde mental; àquela altura, tinha voltado a competir sob um novo técnico com quem não se dava bem, medalhando no Campeonato Europeu, mas sem sucesso no Mundial. A perna e o tornozelo estavam recuperados, mas um apêndice supurado a fez parar novamente. Quando estava recomeçando a competir, veio a pandemia e parou tudo. A própria Elise diz estar certa de ter pego Covid logo no início do surto.

Elise Christie recebe atendimento médico após a colisão com Li Jinyu, em PyeongChang. Foto: How Hwee Young/EFE/EPA
Elise Christie recebe atendimento médico após a colisão com Li Jinyu, em PyeongChang. Foto: How Hwee Young/EFE/EPA

O quarto final do livro mistura esta última etapa da carreira esportiva de Elise, comentários sobre o gerenciamento da pandemia, inclusive do ponto de vista das autoridades esportivas, e o mais valioso: os seus pensamentos sobre saúde mental e mídias sociais. Tendo vivido todo esse drama, Elise busca explicar por que pessoas na mesma situação não buscam ajuda profissional ou rejeitam diagnósticos, ou não dividem seus problemas com as pessoas mais próximas. Partindo de sua experiência, ela oferece conselhos para que ninguém chegue tão fundo – ou até mais – quanto ela chegou. E mostra como as mídias sociais podem puxar alguém (e, especialmente, um atleta) para cima ou para baixo, mesmo que esteja com a saúde mental em dia. Se vocês lembram do que aconteceu com Arthur Nory em Tóquio, sabem a diferença que isso pode fazer.

Até o site do COI descreve Elise como “azarada”, em referência a suas participações olímpicas (não ao restante de sua vida, obviamente). É uma explicação muito simples – e errada. Ela merecia ter se aposentado com ao menos algumas medalhas olímpicas no currículo. Não digo “merecer” no sentido de “ah, coitadinha, olha só por quanta coisa ela passou na vida, deem uma medalha pra ela”, mas porque ela indiscutivelmente estava entre as melhores de sua modalidade e também indiscutivelmente teve oportunidades negadas em Sochi e PyeongChang. Não sou suficientemente especialista em short track para avaliar seu papel na final dos 500 metros em 2014, por exemplo, mas em outros casos é mais evidente que ela não cometeu as infrações que lhe atribuíram, bem como também foi prejudicada quando suas adversárias não foram devidamente punidas por irregularidades reais – sem falar nas decisões desastrosas que afetaram sua preparação para 2018 e a fizeram chegar baleada aos Jogos Olímpicos. Isso não é bem “azar”. E, seja lá o que fosse, Elise estava pronta para deixar para trás em Pequim, transpirando otimismo no capítulo final – o livro ficou pronto antes da contusão que a tirou dos próximos jogos. Quando anunciou a aposentadoria, ela deixou aberta a possibilidade de tentar outro esporte e, quem sabe, voltar a buscar a medalha olímpica em 2026. Tomara.

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