Futebol brasileiro: da saída de bola à batalha de narrativas

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No futebol brasileiro, os goleiros vivem sob pressão. O jovem e promissor Hugo Souza falhou na saída de jogo contra o São Paulo.

Todo dia – todo dia mesmo – algum programa esportivo discute a saída de bola com troca de passes entre goleiro e zagueiros no futebol brasileiro. A cada lance certo ou errado (e como eles acontecem), defensores de um lado e de outro se digladiam, discussão que segue até as redes sociais e acaba se retroalimentando. Tem horas em que enche, eu confesso. Mas é o assunto do momento, gerando defensores apaixonados e críticos ácidos. E tem alguém certo?

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Nessa era de pós-verdade, há uma vontade explícita de muita gente em resumir o tema em uma frase, uma tuitada, um exemplo. Argumentar, debater, analisar, todas essas são palavras fora de moda. Já queremos vereditos, definições, verdades absolutas e indesmentíveis. A discussão sobre a saída de bola é exatamente assim. E acabamos só tratando da superfície, e não da profundidade do assunto – que permite uma reflexão sobre o futebol brasileiro.

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Hoje, uma geração de treinadores tenta implementar a troca de passes desde o goleiro, criando opções desde a saída de bola e movimentando os jogadores para que sempre haja alguém livre. É uma ideia que, sim, está na vanguarda do futebol, mesmo que ela tenha chegado atrasada ao País – assim como a discoteca, o videocassete e o Disney+.

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Quando a saída de bola vira modinha

Como se cria uma forma mais agradável de ver o jogo, é natural que muita gente – principalmente quem analisa o futebol brasileiro – espere que essa tendência seja cada vez mais aplicada no País. Seria ótimo ver um jogo baseado no passe (curto ou longo) e que tivesse mais bola rolando e mais oportunidades de gol. Mas precisa-se de treino e entrosamento para acontecer está sendo implantando em muitos times de forma atabalhoada, como se treinadores de várias gerações quisessem entrar na moda.

Aí já temos um ponto – a falta de atualização dos técnicos brasileiros, que ficou evidenciada na comparação com os estrangeiros. Claro que o efeito Jorge Jesus fez muita diferença, mas havia uma defasagem na média dos profissionais. Menor do que a que apontamos normalmente, mas ela existe. Principalmente nos chamados “medalhões”. Alguns deitaram na fama e, criticados por serem ultrapassados, estão tentando se atualizar pelo menos no discurso neste Brasileirão.

Neste tipo de caso – que afeta não só os veteranos, mas também técnicos mais novos – é que se corre o risco dos erros na saída de bola. É um movimento, repito, que exige treino e conexão entre os jogadores. E que, né, não vai sair de prima, mesmo se você tiver o Neuer no gol e o Beckenbauer na zaga. Implantar essa estratégia exige também suporte dos dirigentes e compreensão dos torcedores.

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Neuer é o modelo do goleiro do século 21. Mas não dá pra clonar ele.

Erros e acertos no futebol brasileiro

O problema da “saída de bola brasileira” é uma certa teimosia de alguns treinadores. Fernando Diniz, o grande defensor do estilo, demorou a perceber que é preciso evitar o risco. Essa forma de iniciar as jogadas tem um risco natural, e o papel do técnico é fazer com que esse perigo não aumente. Tem momentos em que a pressão adversária impede uma troca de passes natural. E aí não dá pra forçar jogadas porque a chance de dar errado é grande. Caso de Hugo Souza, o jovem goleiro do Flamengo, naquele jogo contra o São Paulo do Diniz.

Há situações em que é preciso alongar o jogo, buscar opções nas extremas. A saída de bola curta não pode ser uma opção única, e sim uma filosofia de longo prazo. E quando for preciso tirar a bola de perto da área, que isso não se transforme em um cavalo de batalha. Muito melhor jogar a bola pra longe do que arriscar um lance e deixar o adversário na cara do gol – às vezes sem goleiro.

Natural que a saída no chutão seja ineficiente. É mais fácil cortar esse tipo de jogada. Mas é um recurso que não pode ser jogado no lixo – pode ser uma exceção necessária na saída de bola. Se o futebol é um esporte em que se correm riscos para chegar ao gol, você não precisa ser um camicase por 90 minutos.

O uso dos laterais e a falta de preparo

Uma das teses correntes no futebol brasileiro hoje é a do ‘lateral construtor’. Gabriel Menino, do Palmeiras, é um exemplo, pelo que Tite pensa para ele na seleção. Há outros exemplos, e a ideia é interessante, mas ela é tudo, menos nova. Nosso futebol sempre teve laterais que sabiam jogar pelo meio e pelo lado. O Flamengo de 1981 e a seleção de 1982 que serviram de inspiração para Guardiola tinham Leandro e Júnior, que sabiam derivar pelo meio (tanto que um virou zagueiro e outro meia).

Exemplo de lateral construtor? Que tal Leandro, que estreou no Flamengo em 1978?

Como voltamos a jogar com extremas (os velhos pontas), o trabalho do lateral precisa aliar a construção à velocidade. Eles precisam ser mais explorados na saída de bola. Nós formamos gerações e gerações de zagueiros e goleiros que não sabem jogar com os pés. E ‘arrumar’ jogadores com dez ou 15 anos de experiência é bem mais difícil do que prepará-los com eficiência na base. Por isso goleiros como Santos, Felipe Alves, Tiago Volpi e Wilson são raros no mercado.

Para que possamos fazer o futebol ser tecnicamente melhor, e a saída de bola ser mais natural no futebol brasilerio, o foco tem que ser na base. Não escolher zagueiros puramente por questões físicas, mas também pelo potencial técnico. Trabalhar o passe de forma obsessiva nas categorias inferiores poderá fazer que o Brasil enfim entre no século 21 do futebol.

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