Opinão

Eu tive um sonho: jogos sem analistas táticos e comentaristas de arbitragem

Depois da Era dos Analistas Táticos, eis que uma espécie de Big Bang Esportivo, detonado pelo choque dos planetas Fifa e Hawk-Eye Innovations, inaugura um novo tempo: a Era dos Comentaristas de Arbitragem. Do pernóstico futebol dos scouters, jogo apoiado, linha baixa e externos desequilibrantes, para o esporte cartesiano do ultraintervencionista VAR e suas ressacas, tais como a superinterpretação e o nanoimpedimento.

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Ainda que de cepas distintas, são fenômenos que atuam em sentido idêntico e concentrado: empobrecem o cenário do jogo de bola ao apelar para uma previsibilidade e reprodutibilidade que nada tem a ver com as dimensões metafísicas do esporte, aquilo que, notoriamente, é o que vicia e enlouquece os torcedores. Ora, o futebol só é o que é porque, justamente, não é vôlei, NFL, tênis e nem ginástica artística, por mais que alguns movimentos se assemelhem.

Não há vida possível quando sentamos diante da televisão e de cinco em cinco minutos somos obrigados a ver, e ouvir, intervenções de ex-apitadores mais preocupados em aliviar a barra para os ex-colegas de arbitragem. “Análises” óbvias, para regras simples, com o recurso de imagens que, normalmente, não deixam dúvidas. Apesar disso, há quem apele sempre para o indefectível “houve o toque”, o arqui–inimigo de outro clichê, este adorável, “futebol é jogo de contato”.

E não vamos nem falar dos impactos da nova Nova Era na arquibancada. Pasme o leitor, mas eles, simplesmente, roubaram a experiência da comemoração do gol, só comparável ao nascimento de um filho, ao gole em uma Coca-Cola gelada e, como alguém já disse, ao orgasmo. Não é mais o craque, ou o perna-de-pau, o pai da criança, logo que a bola chacoalha a rede. O milagre da vida, do gol, só acontece, oficialmente, após o carimbo do árbitro de vídeo, um cartorário com feições presidenciais.

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Está aí a geração em que o jogo se desenrola no ritmo das redes sociais e, aqui entre nós, quase não há esperança. Mas, de alguma forma, é preciso protestar. É claro que o futebol também vive nas arrumações dos atletas no gramado e nas mais intrincadas arapucas táticas. Como também requer a boa aplicação do livro de regras da Board. Mas, por favor, já nos bastam comentaristas de TV que não conseguimos identificar se estão em viva voz ou são uma gravação de algum videogame.

Precisamos recuperar aqueles que conseguem decodificar as forças ocultas em campo. Que possam nos explicar muito além do “óbvio ululante”, do que mostra o videoteipe e, se for o caso, “pior para os fatos”, pois, afinal, “no futebol, pior cego é quem só vê a bola”. Alguém que, como diria o filósofo contemporâneo, skatista e um dos mortos mais vivos do Brasil, Chorão, um comentarista que nos sugira o que “só os loucos sabem”.

Noite passada eu tive um sonho. E tanto quanto deliro, hoje, sobre um mundo louco, no qual as pessoas possam sair às ruas sem máscara, dar uma beiçada na cerveja de um amigo e, quem sabe, até subir num biarticulado Santa Cândida/Capão Raso sem culpa, sem medo, só pra curtir a brisa, imagino um futebol livre de analistas táticos e comentaristas de arbitragem. Você pode dizer que eu sou um sonhador. Mas eu não sou o único.

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