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André Pugliesi
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Memória

Eu vi fenômenos terríveis em Bangu. Ou a herança de Ado e o tormento de Marinho

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André Pugliesi
20/02/2021 21:36 - Atualizado: 29/09/2023 20:07
A filosofia do Doutor Castor.
A filosofia do Doutor Castor. | Foto: André Pugliesi

Ainda no embalo do trepidante documentário "Doutor Castor", da Globoplay, aproveito para rememorar a passagem que tive por Bangu, a gangsta's paradise do bicheiro/cartola, em 2006. Turnê exótica, embora qualquer ida à Zona Oeste do Rio possa parecer algo incomum para um curitibano.

Desembarquei no Galeão para conhecer a fábrica de medalhas da seleção brasileira de vôlei em Saquarema, outra paragem singular do estado do Rio de Janeiro. Cenário, do outro lado da Ponte Rio-Niterói, conhecido como "Maracanã do Surf" no Brasil, local também do nosso Woodstock, em 76, cidade do eterno prefeito Serguei.

De volta da, agora já posso falar, pouco emocionante visita ao bunker do voleibol, fui provocado pelo então editor do caderno de Esportes, Leonardo Mendes Júnior, a promover um detour na direção do subúrbio carioca. A pauta: e se o Bangu tivesse sido o campeão brasileiro em 1985, no duelo contra o Coritiba?

"Aaaaaah se o Bangu tivesse sido campeão...", era o sentimento generalizado no bairro a 40 quilômetros do centro do Rio. A lógica: se o Bangu tivesse batido o Coxa, seria a confirmação de Castor de Andrade e, quem sabe, o primeiro e vigoroso capítulo de uma dinastia miliciana da bola.

Não aconteceu. O Alviverde saiu enxaguado em glória de um Maraca lotado, a torcida coxa-branca viu pela Globo o processo de beatificação do goleiro Rafael e, mais tarde, bordou a tão sonhada estrela amarela. Já o Bangu, bem, o Bangu...

Pra usar uma metáfora um tanto infantil, o alvirrubro ficou preso numa espécie de Caverna do Dragão do futebol, sem Castor, o Mestre dos Magos da contravenção, para lhe mostrar o caminho de volta aos tempos de glória. E, desde então, vaga pelas divisões inferiores da bola.

Mas não foram apenas a melancolia, a frustração, a desilusão, o desgosto e a desesperança dos banguenses que marcaram minha ida à Bangu. Fenômenos estranhos ocorreram, para, digamos, comprovar, que o vice-brasileiro lançou mesmo o clube num universo particular.

Ao desembarcar no Estádio Moça Bonita, a casa do Bangu e praça esportiva com um dos melhores nomes que já vi, descobri que a equipe juvenil fazia a outrora chamada "prática" naquele momento. E mais, muito mais: que o filho do ex-jogador Ado, integrava o conjunto.

Miraldo Câmara de Souza é um nome fundamental para a história do futebol, tipo um Mark Chapman, James Earl Ray ou Lee Harvey Oswald do esporte mais popular do planeta. No chute para fora, no sexto pênalti cobrado pelo Bangu na final do Nacional, o ex-avante destruiu o sonho de uma geração inteira de torcedores.

O erro fatal – em seguida, Gomes fez: Coxa campeão –, transformou o bom e arisco atacante num fantasma, o empalhou em vida, fez de Ado uma estátua ambulante do infortúnio. Desde então, Ado dá depoimentos, sempre comoventes e sinceros, pedindo desculpas e querendo mudar aquilo que não se muda.

Eis que o filho dele, cujo nome não recordo, infelizmente, estava lá, em 2006. E a reportagem teve a ideia, cruel, de fotografar o garoto realizando uma cobrança de pênalti. Com bola na marca da cal, e a câmera da Gazeta do Povo alinhada, fez-se um silêncio sepulcral e todos em Bangu, mesmo sem saber, prenderam a respiração como em 85.

Trilado o apito imaginário, o menino avançou, endireitou o corpo, atirou contra a meta e... errou o pênalti. Não houvesse registro regular em cartório, não fosse a cara do pai, se ali ninguém o conhecesse, após o equívoco no "gesto técnico", como dizem os chatos "analistas de desempenho", ainda assim todos teriam certeza: o rapaz era mesmo o filho do Ado.

Ficasse por aí e poderíamos suspeitar que tudo não passara de uma terrível coincidência. Mas teve mais. Fechado o trabalho de campo, e as arguições de praxe, fomos ao último destino em Bangu. A loja de material esportivo local para adquirir uma camisa vermelha e branca, encomenda de um colega.

Próximos da lojinha, notamos a agitação fora do comum mesmo para os padrões do subúrbio. Alguém, ainda não identificado, estava às voltas com os preparativos – suspensão da churrasqueira, compra de bebidinhas e conosquinhos – para um churrasquinho express num dia de semana à tarde. E era ele: Marinho.

Sim, a estrela, o craque, o referente daquele Bangu dos anos 80, completamente desmarcado e à vontade, diante de nós. Surpresa que, naturalmente, preencheu todas as lacunas do material que levaríamos para Curitiba na bagagem. E ainda rendeu um autógrafo no fardamento número 7.

O encontro com o melhor jogador do Brasil em 1985, postulante à uma vaga na seleção de Telê para a Copa do México do ano seguinte, foi igualmente revelador da treta em que o Bangu se meteu desde que tudo que poderia dar errado deu errado naquele dia 31 de julho.

A figura simples, de chinelo de dedo, roupa puída e fala pastosa, em nada lembrava o extraclasse que desfilou pelos gramados. Desviado pela grana, uma tragédia pessoal e os excessos, líquidos e em pó, Marinho perdeu o viço, a carreira e parte da vida. Não fossem os vídeos e testemunhos e seria de se duvidar tudo o que ele jurara para nós.

Ao fim, vi fenômenos terríveis em Bangu. O fardo e a herança de Ado, o tormento de Marinho, e o clube de futebol que foi sequestrado, para sempre, pelo Doutor Castor.

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